Fernando Biagioni
Fernando é pai, fotógrafo e ciclista. Não necessariamente nessa ordem mas às vezes, tudo misturado.
O próprio nome do circuito já te dá uma ideia do que esperar. Subidas. O circuito conecta grandes serras da região central mineira. A Piedade, o Caraça e o Gandarela. Conecta cidades como Catas Altas, Santa Bárbara, Barão de Cocais, Caeté e Rio Acima. Não é pra qualquer um. O sofrimento é garantido mas as recompensas também. Como ainda se encontrava em fase de desenvolvimento e experimentações, nos pareceu um circuito ideal para ser percorrido como bikepacking com barraca e auto-suficiente. Não poderia ter sido melhor.
Nossa história começa em Catas Altas, cidade de onde decidimos iniciar a rota. Numa segunda feira a tarde, nós quatro(eu @fernandobiagioni, Marcelo @cademarcelo, Leo @tracklandco e Fernando @fernando.entreserras) nos encontramos na cachoeira da Santa com a missão de concluir a rota sem suporte, com camping selvagem e banhos de rios. Nos deslocamos para a cachoeira do Maquiné onde montamos o primeiro acampamento da viagem. Uma brisa leve anunciava uma noite fria porém nada que uma fogueira responsável não resolvesse. Os recém colhidos cogumelos que trazia Fernando foram o auge gastronômico dessa noite.
DIA 1 Vocês viram a previsão do tempo?
A primavera já estava quase dobrando a esquina. Em dois dias, se iniciava a estação. Amanhecemos com nuvens carregadas rondando o acampamento. Tínhamos uns 70 quilômetros pela frente e tudo indicava que boa parte deles seriam debaixo d’água. A rota do dia parecia promissora. Algumas subidas, florestas, rios, linhas de trem. Segundo o nosso mapa, haveria também uma atração um tanto improvável: um shopping center em meio ao nada. Para nossa surpresa, o shopping era uma venda daquelas de se perder dentro pela história. Entrar ali, foi voltar 30 anos no tempo. Nonô, o proprietário deu o nome de sua venda de Shopping Center de Bateias. Segundo ele, porque ele vende de tudo um pouco. “Igual shopping center da cidade mesmo.”
Seguimos para Floralia onde fizemos uma parada em um mercado enquanto Leo tentava arrumar o cambio que não subia as marchas. O cabo estava por um fio. Seria melhor tentar andar mais um pouco e trocar quando a situação chegasse a um ponto mais crítico. Saindo dali, o tempo começou a fechar, um pingo aqui, outro ali e de repente a estrada já estava completamente molhada. A lama do pneu começava a atingir os olhos e a fome começava a dar as caras. Fazia sentido fazer uma pausa em Santa Bárbara para consertar o cabo e forrar o estômago. Assim que adentramos a cidade, nos dividimos e enquanto uns faziam o corre da oficina, eu pensei que seria uma boa idéia comer um açaí de almoço. Uma hora depois nos reunimos no centro para seguir o caminho para Cocais.
Não preciso dizer que depois do açaí, minha temperatura corporal baixou uns 10 graus. A chuva se mostrava cada vez mais constante e o restante até Cocais seria debaixo de uma chuva torrencial. Enquanto eu pedalava sem pensar no que estava se passando eu só tinha a certeza de que todos nós em breve entraríamos em um estado de hipotermia. Bem no trevo da entrada do distrito, Fernando ligou para o Oliveira, proprietário de uma grande área na cachoeira de Cocais. O combinado entre eles era que poderíamos montar a barraca lá porém, Oliveira, sentindo através do telefone o estado deplorável em que nos encontrávamos, ofereceu o abrigo de montanha que ele tem na região. Nem contestamos. Seria maravilhoso poder tomar um banho quente.
Em Cocais encontramos um tio do Fernando. Ele nos ofereceu duas opções de pinga que fariam toda a diferença para vencermos os últimos quilômetros até o abrigo. A noite já se anunciava e a chuva mantinha um ritmo crescente. A subida até o rancho do Oliveira era cruel. Molhada então, teoricamente impossível. “Ontem tentei subir de moto e a moto não subiu, de tanta lama!” confessou o vendedor do bar onde conseguimos umas cervejas. Eu só mentalizava o banho, nada mais importava. Daquele bar, até a casa do Oliveira, nem tirei o pé do pedal.
A casa é simples porém de uma riqueza imensurável. Situada a 1km de distância da grande queda da cachoeira, a região veio passando de geração em geração até chegar ao Oliveira. “Estou expandindo aqui pra poder receber melhor quem vem visitar” ele conta. Além do melhor acesso à cachoeira ele oferece essa casa para alugar, uma área de camping além de um bar pra quem vem passar o dia. “Só não ofereço o camping na época da seca por causa do risco de incêndio. Temos que preservar isso aqui” Reconhece, com orgulho. Tenho que concordar que ele tem feito um bom trabalho. É realmente um lugar incrível e bem preservado.
Penduramos todas as roupas molhadas em vão. A umidade era tanta que jamais secariam aquela noite. Colocamos as sapatilhas em frente ao fogão a lenha na esperança que evaporasse pelo menos um pouquinho de toda aquela chuva. As bolsas e bicicletas acumulavam camadas de barro. Que ótima maneira para concluir o dia um. Nos espalhamos pelo quarto e cozinha. Dormimos antes de 9 da noite. O dia seguinte seria o mais pesado da rota.
DIA 2 Será que hoje chove?
O dia mal amanheceu e já dava sinais de que seria diferente. O céu azul tentava dar as caras através das nuvens. Devo confessar que cheguei até a passar protetor solar. Enquanto ainda organizávamos a saída, Marcelo e eu descemos correndo a trilha até a cachoeira. Um mergulho matinal carregaria o restante da bateria. Planejamos sair às 7, mas só conseguimos sair às 10. Saímos por uma trilha dentro da floresta, um dos trechos mais bonitos de toda a rota. Em um certo ponto, encontramos Pedrinho, local de Barão, que nos acompanharia por alguns bons quilômetros. Seguimos por uma antiga linha de trem com túneis incríveis. Quanta história esse cascalho já viu?
O caminho até Antônio dos Santos foi revelando uma beleza a cada curva. Na vila, fizemos uma pausa para o lanche e analisar quanto já havíamos andado e quanto ainda faltava. O tempo parecia estar mudando e alguns quilômetros depois, já estávamos pedalando sob chuva novamente. Dessa vez uma chuva gelada e constante. Tão constante ao ponto de fazer com que alguns de nós cogitasse montar a barraca ali mesmo no meio de algum pasto, mesmo que isso significasse ter que pedalar os quilômetros restantes no dia seguinte. A esse ponto, era questão de honra conseguir chegar a Caeté. Darlan, funcionário da prefeitura de lá disse que mesmo que chegássemos de noite, ele ficaria grato em poder ajudar de alguma forma. Então, novamente beirando a hipotermia, aceitamos o convite de pernoitar em uma casa da prefeitura que está sem atividades há alguns meses. Enquanto tomava mais um banho quente, fiquei pensando que por pouco não estava dormindo em um pasto, debaixo de chuva. No meu caso, um pouco mais confortante porque, por uma questão de peso x equipamentos, só trouxe pra essa viagem o teto da barraca.
DIA 3 Hoje só tem uma subida!
Enfim a Primavera. Quem diria que a noite mais mal dormida seria exatamente aquela dentro de uma casa. Os pernilongos infernizaram a vida de geral durante toda a noite. Nenhum de nós teve uma boa noite de descanso. As pernas estavam pesadas e era visível que algumas horas extras de sono fariam bem. Porém precisávamos seguir. Enquanto tomávamos café da manhã, descobrimos que uma pedra havia se deslocado na estrada que dá acesso ao Santuário da Piedade e como o mesmo se encontra fechado, não conseguimos uma autorização para subir até lá. Como já havíamos estado lá em outras ocasiões, não fizemos tanta questão. E claro, seria um ótimo descanso para as pernas. Seguiríamos então para o destino final do dia.
Arrisco dizer que André, como é carinhosamente apelidado o distrito de André do Mato Dentro, era a minha grande expectativa dessa viagem. Ouvi falar tanto das cachoeiras de lá que, desde que decidimos embarcar nessa viagem, as imagens permeavam o meu imaginário. Nosso plano inicial era subir Piedade e chegar em André no fim do dia para dormir. Com a mudança, seguiríamos direto pra André e passaríamos o dia regenerando em alguma cachoeira. Parecia perfeito.
A previsão do tempo era clara. Não haveria mais chuva. Passamos em um mercado e nos preparamos para um novo acampamento. Chegamos a André antes do meio dia. Um amigo de Fernando que vive ali nos informou que os moradores estão sendo aconselhados a não receber visitantes durante a pandemia. Ele disse que se acampássemos em alguma cachoeira nao seria um problema. Mesmo assim, não estávamos nos sentindo a vontade de ficar mais que um pulo na cachoeira. Assim foi, e decidimos que seria mais sensato seguirmos viagem. Só que o seguir viagem, significava adiantar a subida do Gandarela. O dia que era pra ser de descanso, acabou virando o dia da escalada. Subimos até começar a escurecer. Fernando então lembrou de um galpão abandonado à beira da estrada. Era um local promissor para um acampamento mesmo que arquitetonicamente parecesse que estávamos na União Soviética. Que eu achei demais, na real!
Dia 4 Ainda existem lugares assim?
Que noite incrível por coisas do acaso. Coisas do desplanejamento. A primeira noite da primavera com uma lua crescente em um céu sem nenhuma luz da cidade para ofuscar o brilho das estrelas. Como voltar a viver numa sociedade com tantos supérfluos quando tudo que precisamos é na verdade tão simples? Chegávamos ao penúltimo dia da rota. Uma curta subida até o mirante do Gandarela e então uma descida épica.
Do alto do Gandarela, avistamos Belo Horizonte. Como foi estranho ver a cidade ao longe. Por alguns dias, no nosso imaginário, cidades daquele porte, deixaram de existir. Voltamos a viver do básico. Comer, pedalar e dormir. E poderíamos seguir assim por muito tempo. Foi um aprendizado sobre como valorizar as pequenas coisas da vida. De longe, a cidade pulsava, mas mesmo assim parecia cada vez mais distante. Viramos pro outro lado e demos de cara com a cachoeira do Capivari. Um feixe de água que verte através de um complexo de serras, montanhas e que atravessa o vale até encontrar a estrada que descíamos. Nesse momento eu percebi que o Circuito Entre Serras era muito mais que um desafio ou um circuito. Estávamos vivendo um processo de reconexão com os princípios básicos de viver. Era uma viagem espiritual individual mas em grupo através daqueles caminhos.
Paramos para apreciar a alegria da criança que pulava no rio. Enquanto experimentávamos a mesma sensação, conhecemos Pedro. Ele estava do outro lado do rio. Subiu no seu cavalo e veio até nós sem molhar os pés. Pedro tem 79 anos e estava pegando os lixos que eventualmente visitantes deixavam por ali. “Tem que preservar, né, pra ficar bonito” ele nos diz sorrindo. Lembrei do Oliveira. Lembrei de tantas outras situações que vivemos, cada lugar que passamos estava perceptível o quanto as pessoas valorizam aonde vivem. Uma preciosidade que realmente merece todo o cuidado. Um dia a mineração vai embora. Mas a natureza, se preservada, vai estar sempre lá.
Precisávamos seguir, por mais que gostaríamos de viver além das imposições de datas e calendários, nossa viagem chegava ao fim. Era a última noite de acampamento. Fernando nos levou até uma floresta próxima a entrada do Santuário do Caraça e montamos as barracas já de noite. O banho foi no rio que ali passava e o nível de cansaço era tanto que pegamos lenha e acabamos nem acendendo a fogueira.
Dia 5 Quando o inverno acabar
Acordamos cedo, fez muito frio. Certamente o dia mais frio da viagem. O plano era subir para o Caraça e depois cortar por um caminho alternativo de volta a Catas Altas. Infelizmente não permitiram nossa entrada no Caraça. Estava acontecendo um seminário e só poderíamos subir com agendamento. Tentamos explicar mas sem sucesso. Assim como na Piedade, achamos que era um sinal divino. Por mais que chegar a Catas Altas significasse que o ciclo se fechava, a sensação é de que era só o começo. No caminho para Catas Altas, encontramos alguns amigos, inclusive a Alessandra, idealizadora da rota com o Fernando. “O que é a coisa mais importante da vida, Alessandra?” “Viver. Simplesmente viver. E isso aqui proporciona a gente isso.”
Eu vivi boa parte da minha vida em Belo Horizonte, 90km de distância de Barão de Cocais e mesmo assim, nunca tinha ouvido falar das cachoeiras de lá. As vezes a gente vai tão longe para achar o que estava bem ali no nosso quintal. Concluir o ciclo nos fez perceber que toda história que vivemos ali agora faz parte da gente. O que a gente busca está bem na nossa frente. Basta querer ver. Não sei qual será minha próxima viagem, mas sei onde vou estar quando a primavera chegar.
Quer fazer o circuito?
www.circuitoentreserras.com.br