PUNA ARGENTINA

PUNA ARGENTINA

Se existe uma sensação que a Puna te transmite, é de que você não deveria estar aqui. Essa é uma área de transição e os ventos que por aqui sopram, há muito sabem disso. É possível acostumar com as tempestades de areia, com as náuseas da altitude, com as distâncias, com o silêncio e a solidão mas o vento, aqui, esse é um elemento simplesmente incontrolável. Não é à toa os poucos relatos que encontramos sobre cicloturismo na Puna fora da Ruta 40.

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O plano inicial era pegar um ônibus de Jujuy a Purmamarca porém alguns fatores tornariam esse plano improvável. Então essa viagem começa em Jujuy, em outubro de 2018. Não contando com a siesta, nos encontramos no centro da cidade na busca por um botijão de gás com rosca para o fogareiro. O que parecia uma tarefa simples, acabou nos custando todo o dia até que as tiendas começaram a abrir as 17h. Munidos do combustível, Marcelo e eu pegamos estrada no fim da tarde e tínhamos como destino o camping El Refugio em Yala, uns 20km do centro de Jujuy. Dali poderíamos organizar, distribuir melhor os equipamentos e estudar a rota que planejamos para então seguir no dia seguinte.

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Se tem uma coisa que aprendemos com o vento é que durante a manhã ele praticamente não existe. Tão quanto são silenciosas as noites. Porém, quando o relógio se aproxima do meio dia, é ele quem aparece para agraciar e transformar/transtornar. Digamos que no primeiro dia fomos um tanto sortudos com ele. Cinquenta quilômetros separam Yala de Purmamarca. Como não saímos muito cedo, não levou muito pro vento aparecer. E falando da sorte, ele soprava na mesma direção em que pedalávamos e não demorou para atravessarmos Bárcena, Volcán e Tumbaya, tudo por asfalto, um pouco chato por sinal.

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Purmamarca era nossa porta de entrada. A partir dali, a rota era pra valer. Ali marcaria a despedida da “civilização”, da internet e provavelmente o último banho dos próximos cinco dias.
Purma vive do turismo. Durante o dia são centenas de turistas visitando o Cerro de Los Siete Colores, cartão postal da região. O mercado de artesanato na praça central exibe o que existe de melhor da cultura andina desde a culinária até as vestimentas feitas do pelo de lhamas e alpacas. Aproveitamos o clima de despedida e jantamos em um bom restaurante enquanto um argentino cantava que “a Jujuy siempre se vuelve”.

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Saimos cedo porém mais tarde que o planejado. O vento já soprava mas poucos quilômetros nos aguardavam. A partir dali, subir teria que ser gradativo. Com a ajuda das hojas de coca trabalhávamos nosso caminho para a aclimatação. O plano era acampar logo depois de Huachichocana, um pueblo aborígene, antes de escalar a antiga estrada que levava ao Pibes. Como o sol era intenso, paramos embaixo da ponte que dá acesso ao vilarejo e por lá ficamos até quase o fim da tarde.

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Começamos então a subir pelo leito do rio em um estrada improvisada que dava a impressão que se transformava a cada vez que o rio se enchia nas épocas de chuva. No caminho encontramos uma senhora que nos disse que o caminho que queríamos fazer era impossível. Acostumados a ouvir isso em Minas, ignoramos a informação e seguimos. Chegamos em Huachichocana no final do dia. Recebidos por Alberto, que leva os turistas para conhecer as pinturas rupestres da região, descobrimos que realmente a estrada era impossível. Como foi abandonada ao longo dos anos, e com a falta de manutenção, partes da estrada ruíram, o que fazia com que fosse necessário escalar em alguns trechos. Alberto nos ofereceu para acamparmos por ali mas como a diferença de altitude era grande, resolvemos descer voltando parte da estrada e acampamos no leito do mesmo rio. Já começávamos a nos acostumar com a ideia de ter que pedalar mais asfalto e subir a Cuesta de Lipán no dia seguinte.

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Eis que então amanhecemos conhecendo um novo inimigo: cactus e seus espinhos. Com um espinho de 2cm cravado no pneu, descemos de volta até o asfalto. O acostamento parecia um bom lugar para transformar em uma oficina. Foi então que parou Juan com seu caminhão. Juan sobe a Cuesta de Lipán 5 vezes por semana, as vezes até três vezes por dia. Vai até o Chile carregar o caminhão de lítio em uma mina e faz o frete até a processadora. Sem pestanejar, aceitamos a carona sem saber exatamente para onde seguiríamos. Ele sugeriu Susques. Aceitamos. Nos restaria fazer a nossa rota em sentido contrário ao planejado. A carona fez com que ganhássemos pelo menos dois dias. A subida que evitamos nesse dia foi de 25km saindo de 2700m acima do nível do mar até 4200m. Sem contar a reta eterna para atravessar a Salinas Grandes. Somando tudo, um total de 125km. Foi um bom negócio.

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Chegamos em Susques ainda de manhã. Nossa rota tinha tomado outro rumo e precisávamos entender os próximos passos. Não tivemos muito sucesso em encontrar hospedagem no centro. Só seria possível a 1km da cidade no La Unquillar. O preço não seria dos melhores mas soava como uma boa opção para a previsão de seis graus negativos daquela noite. De volta ao centro, tínhamos tempo de sobra para conhecer a cidade e subir o Cerro para ter uma visão panorâmica. A subida, com a altitude, se demonstrava uma missão mais complexa que o planejado. Foi então que surgiram alguns encontros inesperados. A cidade se transformara em um reduto de cicloturistas. Brigitte, Moritz, Barbara e René.

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Barbara e René vinham da direção em que seguiríamos. Brigitte e Moritz fariam o mesmo caminho que o nosso. Saímos todos para jantar e combinar a partida juntos no dia seguinte. A ideia era entrar na mítica Ruta 40 e ao sul seguir. Como nossos pneus eram maiores e mais adequados para terra, acabou sendo natural que pedalássemos mais rápido. Durante o caminho nos despedimos de Brigitte e Moritz com a esperança de que nos encontraríamos pelas estradas. Nosso plano era pedalar até Pastos Chicos. Eles queriam seguir um pouco mais até Puesto Sey. A medida que aproximávamos de Pastos, o vento se intensificava e tínhamos certeza que no fim das contas eles também parariam por lá. Na nossa chegada, compramos um litrão de Salta que bebemos mais rápido que água. Ficamos esperando até o final da tarde até que finalmente nos demos conta de que provavelmente eles teriam seguido. Tal pensamento foi confirmado no dia seguinte quando, de volta à estrada, percebemos as marcas de pneu naquela direção.

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Esse trecho é longo. A reta interminável ainda faz parecer maior ainda. Paramos em Puesto Sey para abastecer os estoques de água, comprar um queijo, salame, pão. Aproveitamos para almoçar em uma das casas abandonadas nos abrigando do vento para conseguir acender o fogareiro. Tínhamos mais alguns quilômetros pela frente até o vulcão Tuzgle. Se tudo desse certo, nosso acampamento seria em sua base.

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Aos poucos, a reta foi dando lugar a uma subida leve e a paisagem já mudara drasticamente. Por ali, veríamos as primeiras lhamas e vicuñas selvagens. Digo lhamas e vicuñas porque até hoje não sei identificar muito bem as diferenças entre elas, as alpacas e os guanacos.

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Tudo ia conforme planejado. Até encontramos as aguas calientes próximas ao vulcão. Faltava muito pouco para a virada do “cume” a 4500m. Mas, meu amigo, o vento estava lá. Naquelas condições, seria impossível montar uma barraca. Mal conseguimos seguir em linha reta, imagina montar uma barraca. Era inevitável seguir e então seguimos até o pneu encontrar mais um cactus e forçar uma parada. Parecia um bom lugar pra acampar. Saímos da estrada e então nos deparamos com um fenômeno curioso. O chão estava todo marcado de algum animal rastejante. Analisando melhor, começamos a ver vários buracos. A medida em que caminhávamos, partes do chão cediam revelando uma rede de túneis. Eram lagartos gigantes e não nos sentimos mais tão a vontade pra montar a barraca ali. Remendamos o pneu e continuamos descendo até descobrir mais um furo no pneu. E então mais um, e mais outro. O sol já começava a se despedir e encontrar um abrigo do vento era fundamental. Eis que então, camuflada nas encostas da estrada, encontramos uma casa de pedra abandonada, sem teto mas com paredes firmes, mais conhecido como Hotel de um bilhão de estrelas a 4300m de altitude com vista para o vulcão.

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A noite, veio o frio. Não sei quão frio. O suficiente para congelar a água das garrafinhas. O suficiente para congelar a água do lago próximo. O suficiente pra congelar a água corrente do rio. Estava frio. Só foi possível desarmar o acampamento após as 9 horas mas não estávamos longe de San Antonio de Los Cobres então não aceleramos. Aos poucos fomos descendo pelo vale que até então se revelava como o mais bonito da viagem.

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Atravessamos por baixo do Viaduto de la Polvorilla e seguindo as orientações no maps.me entramos em uma estradinha de areia profunda e eterna. Controlar a bicicleta era um tanto quanto impossível. A técnica era pedalar e rezar. E rezar mesmo. A estrada terminou em um rio e não conseguíamos ver sua continuação. Analisando o mapa, parecia lógico pedalar por dentro do rio, seguindo o curso da água e foi o que fizemos até que o rio encontrou com uma estrada maior. Já estávamos a 2km de San Antonio.

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Na Puna é tranquilo e seguro acampar em todo lugar apesar de não ter campings. Mesmo assim, em vilarejos maiores, sempre procurávamos uma hospedagem pra recarregar as baterias, curtir um wifi e um banho. Não foi diferente em San Antonio. Com ajuda do app ioverlander, encontramos uma hospedaje bem falada entre os ciclistas. Qual não foi nossa surpresa ao entrar ali nos deparar com as bikes de Brigitte e Moritz. Saimos para almoçar uma milanesa de lhama e demos uma volta de reconhecimento pela cidade. Estávamos a frente do planejado e decidimos que ali seria um bom lugar para gastar mais um dia. Na volta do almoço, mais três cicloturistas no hotel. O casal de franceses Elise e Victor seguiam para o sul e um japonês que agora me foge o nome, já há três anos na estrada.

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Em Cobres, conseguimos liberar umas pendências, sacar dinheiro e planejar o dia seguinte. Segundo Sergio, dono do hotel, o caminho que pretendíamos fazer até o povoado de El Moreno estaria repleto de costelas e muita areia. Mais uma vez, não acreditamos e “pagamos” pra ver. E não é que ele estava certo?

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A medida que pedalávamos, fazia cada vez mais sentido dividir esse trecho em dois. Decidimos que pedalaríamos ate o vento dar as caras e ele então nunca apareceu. Com um mix de empurra bike, carrega bike e pedala bike, chegamos ao povoado de El Palomar e já fazia sentido montar a barraca. Faltava só um bom lugar, que acabamos não encontrando. Seguimos, seguimos, o sol se foi e quando nos demos conta faltavam pouco mais de 15km até El Moreno. Depois do longo dia, era questão de honra chegar até lá. Já era noite quando avistamos as luzes da vila brilhando ao longe. Foi curioso entrar ali e ver o pessoal jogando futebol na mais completa escuridão e sem luz no campo. Por algum milagre, depois de 94km, pedalando de 8 da manhã até 8 da noite conseguimos uma hospedaje com a Angelica, mais barato que o camping de Purmamarca. Guardamos as bikes e fomos jantar no único restaurante da cidade. Um sanduíche de milanesa seria o highlight culinário de toda a viagem.

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Dali, apenas 25km nos separavam do asfalto. Se tudo desse certo, chegaríamos até lá pedalando, pegaríamos uma carona pro topo do Lipán e desceríamos até Purmamarca, fechando o loop. Acontece, que como tudo na Puna, tudo muda. A estrada que pegamos é a mesma estrada do início da viagem, que tinha ruído. A única diferença é que estávamos fazendo ela por trás. E devo dizer, não foi das melhores experiencias. Com dois quilômetros, a estrada deixou de existir e deu lugar ao leito de um rio seco, com pedras do tamanho de bolas de boliche. Pedalar ali se tornou uma missão um tanto particular. No inicio ainda era possível. A medida que avançávamos, a dificuldade aumentava e quando nos demos conta, já estávamos empurrando por dentro do rio há mais de seis horas e tínhamos deslocado 15km. Alternando entre o leito e “dentro” do rio, descobrimos mais cactus e espinhos e aproximadamente a cada 3km tínhamos que remendar algum furo. *Jamais venha pra Puna sem ser tubeless.

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Quando finalmente conseguimos vencer as partes de hikeabike, remendamos o último pneu e esse então se rasgou no bico. Não nos restavam mais câmaras. O resto era continuar empurrando até o asfalto e rezar por uma carona. O tempo começava a mudar e os ventos anunciavam uma noite fria a caminho. Depois de duas horas levantando o dedo na beira da estrada eis que surge uma caminhonete branca que nos resgata com uma carona até Purmamarca. Depois fiquei pensando que como não tínhamos subido o Lipán pedalando, não teria sido justo só descer. Era a Puna cobrando seu preço.

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O preço que a Puna realmente cobraria, só iríamos descobrir na hora de pagar o jantar daquela noite. O cartão de credito teria ficado na máquina em San Antonio de los Cobres. O pouco dinheiro que nos restava teria que ser suficiente para duas pessoas para os próximos quatro dias. Mas isso é outra história.


HOSPEDAGENS E CAMPINGS

EL REFUGIO – Yala, Argentina – camping – 150 pesos por pessoa – Wifi, tomadas, churrasqueira, banho quente

BEBO VILTE – Purmamarca, Argentina – camping – 200 pesos por pessoa – Wifi, banho quente

EL UNQUILLAR – Susques, Argentina – hotel – 500 pesos por pessoa – wifi, banho quente, café da manhã

HOSPEDAJE VENAVIDEZ – Pastos Chicos – pouso – 150 pesos por pessoa – wifi, banho quente

LA ESPERANZA – San Antonio de Los Cobres, Argentina – hotel – 300 pesos por pessoa – wifi, banho quente, café da manhã

EL MORENO – El Moreno, Argentina – pouso – 150 pesos por pessoa – Sem wifi, sem café e sem banho quente

FER02027As belezas da RUTA 40

DJI_0853Eu e Marcelo, a equipe
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Saída de El Moreno pela estrada antiga

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Acampamento no leito do rio Huachichocana

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Hospedagem do Luis Venavidez em Pastos Chicos

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Aguas Calientes próximo ao Tuzgle

FER02042-2O silêncio da Puna
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Quase chegando ao vulcão

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Atalhos nem sempre são uma boa idéia

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Cerro Tuzgle 5486m

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Tuzgle pela manhã

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Lhamas, Alpacas, Guanacos e Vicuñas

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San Antonio de los Cobres

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Retas e mais retas

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Rota para El Moreno com o Chañi ao fundo

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#roadslikethese

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Chegando em El Palomar

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O famoso Paseo de los Colorados em Purmamarca
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Vale de Huachichocana

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Cozinha contra o vento

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Huachichocana

IMG_9639Almacén em Puesto Sey

 

 

 

 

 

 

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